Jornal da Cidadania - Ibase  -  Canal Cultura  -  pg. 15  -   23/9
Cotas Raciais: Um direito
Cristina Lopes

Pesquisadora do Ibase

Há cinco anos, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e a Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) se tornaram pioneiras na adoção de cotas raciais e sociais para o preenchimento de parte das vagas da graduação.

De lá pra cá muito se questionou sobre esta lei: melhorar as escolas públicas não seria uma forma de corrigir as desigualdades no acesso à educação superior? Este tipo de medida provoca uma queda na qualidade do ensino? Cria preconceito e discriminação racial? A identidade nacional brasileira tem sido construída sob o mito da democracia racial.

O que seria esse mito? A construção de uma idéia de nação onde todas as raças viveriam em harmonia, sem conflitos ou segregações, diferente do que ocorreu, por exemplo, nos Estados Unidos e na África do Sul. A ausência de evidências mais óbvias desses conflitos leva a crer que a ascensão social de afro-descendentes não é limitada por barreira racial, fazendo com que as reivindicações de movimentos sociais e políticas públicas específicaspara este grupo pareçam absurdas.

DISPARIDADES

No entanto, se analisarmos dados relativos à educação e saúde públicas, perceberemos que negros(as) têm atendimento diferenciado e pior. Por exemplo: nos atendimentos realizados pelo
SUS, as mulheres negras (pretas e pardas) recebem menos anestesia no parto normal do que as brancas; estudantes negros(as) têm rendimento escolar inferior ao de alunos(as) brancos(as), independente da renda familiar ou escolaridade dos pais, pois são afetados(as) por diversos mecanismos de discriminação racial na escola (desde as relações até o material didático e as práticas pedagógicas aplicadas).

No mercado de trabalho não é diferente. Pessoas negras com a mesma escolaridade, desempenhando as mesmas funções, recebem menos do que colegas de trabalho brancos. Em outras palavras, esses exemplos são reflexos do que chamamos racismo estrutural, presente nas percepções e ações cotidianas das pessoas e, conseqüentemente, nas instituições onde elas atuam.

A luta por uma educação de qualidade para a população afro-descendente já é antiga por parte de organizações do movimento negro e de outras entidades que militam na luta anti-racista. As cotas
raciais são uma modalidade de ação afirmativa que tem como objetivo minimizar os efeitos discriminatórios sobre um segmento específico da população.

Devem ser percebidas como um direito, e não como algo que busca ajudar estudantes não-capacitados(as) a entrar nas universidades. Esse argumento caiu por terra após análises de diferentes universidades brasileiras terem constatado que o rendimento de cotistas, na maioria dos cursos, é igual ou melhor do que de alunos(as) não-cotistas.

Apesar de contrariar o rendimento inferior que possivelmente possuíam nos níveis básico e médio, no espaço da universidade um novo fator entra em campo: a resiliência educacional. Este conceito, conhecido no campo da Educação, indica que alunos(as) que enfrentam situações adversas tendem a superar barreiras mais facilmente. Outro fator que precisa ser ressaltado é que estudantes têm que passar na primeira fase do concurso para, só na fase seguinte, concorrerem como cotistas.

A melhoria do sistema público de ensino é fundamental, mas não podemos propor que, por mais dez ou quinze anos, jovens negros(as) sejam prejudicados(as). Os grandes meios de comunicação também têm sua parcela de responsabilidade, pois tratam a questão das cotas de forma parcial, mostrando, quase categoricamente, apenas motivos para sermos contrários(as) a elas. A divulgação de diferentes opiniões é o que garante uma difusão democrática e ética da informação.

Podemos observar que muitos(as) jovens em debates sobre cotas raciais se opõem a tal política mais por repetição dos argumentos que ouvem e lêem na grande mídia do que por acreditarem, de fato, na ineficiência da política.O racismo está presente em nossa sociedade e não podemos responsabilizar as cotas pelo surgimento ou estímulo de conflitos raciais.

É possível que a maior presença de negros(as) em um determinado espaço provoque, por parte de quem discrimina, o racismo. Entretanto, cidadãos e cidadãs negros(as) não podem ser privados(as) de uma boa educação e de bons empregos porque sua presença provoca atos preconceituosos por parte de pessoas racistas.

As cotas têm um papel que vai além da promoção do ingresso de uma população específica à universidade. Elas suscitam o debate sobre a questão racial no Brasil. Questionam a diversidade nas instituições de ensino, fundamentais para a formação dos indivíduos. Fazem refletir sobre o passado escravocrata e suas heranças que geram grosseiras disparidades entre brancos(as) e negros(as) no país. Convidam a repensar antigos preconceitos e estereótipos, o que incomodam e tornam a questão polêmica, mas não menos necessária.


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