Época  -  Educação  -  pg. 102  -   5/5
Discriminação não é solução
ALEXANDRE MANSUR E NELITO FERNANDES

Um grupo de cidadãos influentes pressiona o STF a acabar com a política de cotas para entrar na universidade. O argumento: ela e injusta e ineficaz

UM GRUPO DE 113 CIDADÃOS INFLUENtes - intelectuais, empresários, advogados, artistas e sindicalistas - tomou, na semana passada, uma das iniciativas mais fortes contra a política de cotas raciais do país. Na quarta-feira, uma comissão de oito pessoas entregou um abaixo-assinado ao presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Gilmar Mendes. O documento pede que a Justiça considere inconstitucional o sistema de cotas para a seleção de candidatos nas universidades. Desde 2004, algumas universidades federais e estaduais estabelecem reserva de vagas para os vestibulandos que se declararem negros. A política despertou reações contrárias e várias ações diretas de inconstitucionalidade, que estão sendo julgadas no STE. Os autores do documento, intitulado "Cento e treze cidadãos anti-racistas contra as leis raciais', pedem ao Supremo que seja favorável a essas ações.

Eles argumentam que as cotas não fazem sentido. "O processo de formação da sociedade brasileira foi marcado pela miscigenação desde a primeira presença de portugueses aqui”, diz a historiadora Isabel Lustosa, do museu e centro de estudos Casa Rui Barbosa. Segundo ela, tentar discriminar por raça agora cria uma divisão artificial na sociedade. "Em Brasília, o sujeito tem de olhar se o cabelo do candidato está no padrão ou não”.

De acordo com o grupo contra as cotas, a Constituição proíbe a União, os Estados e os municípios de criar distinções entre brasileiros ou "preferências entre si”. Também argumentam que, segundo a Constituição, a tarefa do governo é garantir o acesso aos níveis mais elevados do ensino "segundo a capacidade de cada um”. Uma política baseada em cor de pele seria injusta porque, no Brasil, a pobreza tem todas as matizes. É o que revela a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2006. Dos 12,9 milhões de pessoas com renda familiar per capita de até meio salário mínimo, 9% se definem como "pretos" e 60% como "pardos”. Mas 30% se dizem "brancos" e não se habilitariam a cotas. Apenas 21% dos "brancos" e 16% dos "pretos" ou "pardos" haviam completado o ensino médio. "Basicamente, são diferenças de renda, com tudo o que vem associado a elas, e não de cor, que limitam o acesso ao ensino superior”, diz o manifesto.

Os defensores das cotas afirmam que o sistema é um caminho para corrigir as distorções históricas do país, provocadas pela escravidão negra e maus-tratos a índios. "O mesmo argumento usado por eles contra as cotas é usado  por nós a favor”: diz o frei Valnei Brunetto, coordenador da ONG Educafro, que promove cursos pré-vestibulares para negros. "Eles dizem que as cotas ferem o direito de igualdade. Nós dizemos o contrário: elas garantem a igualdade de direitos.”

Um segundo argumento contra a política de cotas é a dificuldade de criar um método coerente para separar as pessoas por raça ou cor de pele. Já foi sugerido que seria possível fazer essa identificação por meio da genética. As pesquisas mais recentes apontam justamente o contrário: somos todos semelhantes. As características físicas que atribuímos às raças são recentes na história humana. Nossa espécie surgiu há cerca de 200 mil anos, na África. Estudos antropológicos com escavações e testes genéticos revelam que os primeiros humanos só saíram do continente africano há cerca de 50 mil anos. Nas terras mais frias, os indivíduos com pele mais clara levaram vantagem evolutiva, porque absorviam mais calor do Sol. Entre 6 mil e 12 mil anos atrás, a população européia embranqueceu. Como diz o médico Drauzio Varella: "Até ontem, éramos todos negros”.

Embora a idéia de cotas possa ter algumas justificativas, há formas mais eficientes de compensar alguma desigualdade racial. As cotas se inspiram na política de ações afirmativas, surgida nos Estados Unidos, em 1961, para reparar a histórica discriminação contra os negros. A primeira derrota do sistema veio em 1978, quando a Suprema Corte impôs limites às cotas na Universidade da Califórnia. O argumento era que as maiores oportunidades para as minorias não poderiam acontecer ao custo da perda de direitos da maioria. Em 1997, a Justiça da Califómia baniu todas as formas de ação afirmativa, seguida por Michigan, em 1998, e pela Flórida, em 2000.

Em três décadas de ações afirmativas, os indicadores sociais dos negros americanos melhoraram pouco. A taxa de mortalidade das crianças negras aumentou, a expectativa de vida dos homens negros diminuiu e o desemprego continua duas vezes maior que entre os brancos. A seu favor, o número de negros juízes, advogados, físicos e engenheiros triplicou. "As cotas garantem acesso somente a grupos que já estavam longe da miséria”,  diz o economista americano Thomas Sowell. Ele é negro, nascido no Harlem, tradicional bairro de afrodescendentes em Nova York. No livro Ação Afirmativa ao Redor do Mundo (UniverCidade Editora), Sowell diz que, "para garantir a melhora social, é infinitamente melhor providenciar um ensino básico sólido para todos”.

No Brasil, os resultados da política de cotas são, no mínimo, contraditórios. Um aspecto positivo é que elas parecem levar mais alunos pobres para a universidade e não baixam o rendimento acadêmico, como temiam alguns. Nas universidades estaduais do Rio de Janeiro (Uerj) e da Bahia (Uneb ), onde o sistema já está em vigor, a nota média dos alunos cotistas e não-cotistas ao longo do curso é praticamente a mesma. O que complica a avaliação dos resultados é que as cotas brasileiras misturam critérios de raça (que privilegiam alunos declaradamente "negros" ou "índios") com econômicos ( que reservam vagas para estudantes de escolas públicas, independentemente de sua cor).

Doze das principais universidades federais e estaduais beneficiaram, até 2007, 40 mil pessoas por meio de ações afirmativas de inclusão social. A campeã é a Uerj, que aplica o sistema desde 2003 e reserva 50% das vagas para cotistas, com 6.488 beneficiados. A Universidade de São Paulo (USP), a maior do país, evitou o sistema de cotas, por considerá-Io contrário ao reconhecimento por mérito acadêmico. A USP desenvolveu em 2006 um sistema de inclusão que não prevê a reserva de vagas - apenas contempla os candidatos de escolas públicas com um acréscimo de 3% sobre a nota final em seu vestibular.

Para compensar a desigualdade econômica e racial do país, os autores do manifesto propõem outro tipo de ação. "A política que tem de haver é de uma distribuição melhor do acesso à boa educação”, diz Isabel. "Sou a favor de bolsas de estudo, como tive em meu colégio de freiras no Ceará. Éramos 13 filhos. Todos de cores variadas.”


Topo     Imprimir      Volta