Jornal do Brasil  -  País  -  pg. A2  -   25/5
Negros superam mito e obtêm boas notas
Fred Raposo e Marsílea Gombata

Ipea indica desempenhos similares ou até melhores em relação a não-cotistas em quatro das principais universidades do país

No universo de 54 universidades públicas que nos últimos oito anos adotaram o sistema de cotas, em ao menos quatro, distribuídas pelos principais Estados, alunos negros apresentam desempenho próximo, similar ou até melhor em relação aos não-cotistas.

Resultados iniciais do aproveitamento de cotistas na Unicamp, Universidade Federal da Bahia (UFBa), Universidade de Brasília (UnB) e Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), divulgados semana passada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), derrubam mito de que, graças à ação afirmativa, alunos negros estariam “entrando pela janela” das instituições superiores da rede pública. As notas lhes abriram o caminho da porta da frente.

No biênio 2005-2006, cotistas obtiveram maior média de rendimento em 31 dos 55 cursos (Unicamp) e coeficiente de rendimento (CR) igual ou superior aos de não-cotistas em 11 dos 16 cursos (UFBa). Na UnB, não-cotistas tiveram maior índice de aprovação (92,98% contra 88,90%) e maior média geral do curso (3,79% contra 3,57%), porém trancaram 1,76% das matérias, contra 1,73% dos cotistas.

Aptidão

Em estudo da ONG Educação e Cidadania de Afro-descendentes e Carentes (Educafro) junto à Uerj, estudantes negros e oriundos da rede pública, ingressantes entre 2003 e 2007, apresentaram maior coeficiente de rendimento médio (6,41 e 6,56 respectivamente) em relação aos cotistas (6,37). Índios e deficientes somaram 5,73.

Para a técnica da diretoria de estudos sociais do Ipea, Luciana Jaccoud, um dos fatores que explicam o bom desempenho dos cotistas é a capacidade das instituições de ensino desenvolverem aptidões.

– A própria universidade estabelece pontos mínimos a serem alcançados para que o estudante seja aprovado – analisa Luciana, uma das responsáveis pelo estudo. – Esse instrumento ajuda a regular o desempenho de cada um. O resultado é a formação mais igualitária das capacidades do aluno, seja proveniente da rede particular ou pública.

Colegas de classe, Patrícia Vidal, 21, e José Messias, 20, ingressaram na Uerj, em 2006, por meio do sistema de cotas: ela proveniente da rede pública e ele matriculado como candidato negro. Ambos apresentam CR próximo à média da turma, mas admitem que, não fosse a reserva de vagas, não passariam no vestibular.

– Tive dificuldade no início, mas ao longo do curso vamos entendendo como a coisa funciona, e hoje estamos bem iguais – relata Messias, que mora em Maria da Graça, e viaja 50 minutos de ônibus até a faculdade. – Depois do primeiro período, a defasagem em relação aos demais alunos acabou.

Com CR 8,6, Messias conta que acompanhou treinamento de português e línguas estrangeiras oferecido a cotistas pelo programa Proiniciar. Patrícia tem CR 9,1, mas diz que é a única dos cotistas da turma que ainda não conseguiu estagiar.

– As oportunidades são as mesmas para todos – lembra a estudante, que começou a procurar estágio a partir do terceiro período, mas trabalha com telemarketing antes mesmo de entrar na faculdade. – Assim como os demais estudantes, os outros três cotistas da turma já passaram por dois ou três estágios.

Segundo o Ipea, os bons resultados em sala de aula têm reflexo incompatível com o número de vagas oferecidas aos cotistas.

Ao colocar na ponta do lápis, o Ipea contabilizou mais de 51 mil vagas para negros – acumuladas desde que a medida foi implantada, em 2001, até a projeção para o ano atual. Número inexpressivo, se comparado aos cerca de 1,2 milhão de alunos (entre cotistas e não-cotistas) matriculados na rede pública de ensino superior, em 2005.

Dados do Censo Educacional de 2005 do MEC mostram ainda que instituições públicas realizam, em média, 331 mil matrículas anualmente. Apenas 2,37% (cerca de 7.850) delas são destinadas a estudantes negros, segundo o Ipea.

– O índice não condiz com a realidade – avalia Oliveira Silveira, historiador e idealizador do Dia da Consciência Negra (20 de novembro). – Os negros representam quase metade da população brasileira. Deve haver esforço para aumentar sua participação por meio das vagas.


Quem defende: ensino superior incompleto

Representantes em dois dos Três Poderes, alguns dos principais defensores da adoção do sistema de cotas pelas universidades, não terminaram o ensino superior.

No Executivo, o ministro da Igualdade Racial, Edson Santos, concluiu o ensino médio. Cursou ciências sociais, na Uerj, até o quinto período, quando abandonou os estudos para dedicar-se ao engajamento político.

No Legislativo, tanto o senador Paulo Paim (PT-RS) – autor do Estatuto da Igualdade Racial, durante mandato no Congresso, em 2006 – quanto o deputado federal Carlos Santana (PT-RJ) – presidente da Frente Parlamentar da Igualdade Racial – completaram o segundo grau.

Exceção

Santana conta que cursou até o terceiro período de direito, em escola particular. Aos 24 anos, trocou os livros pela presidência do Sindicato dos Ferroviários.

– Viajávamos bastante, cobrindo muitas vezes até três Estados – relata o deputado, que trabalha desde os 14 anos. – A causa política foi mais forte.

Paim foi aprovado no vestibular de direito para uma faculdade particular, em Caxias do Sul, mas afirma não ter tido condições financeiras para levar os estudos adiante.

– Fiz junto com amigos que podiam pagar o curso – contextualiza o senador. – Dali para frente segui trabalhando, mas sinto que hoje o estudo faz falta.

Uma exceção é Joaquim Barbosa, primeiro negro a ocupar uma das 11 vagas de ministro no Supremo Tribunal Federal (STF). Depois de completar o segundo grau em colégio público, o representante do Legislativo formou-se bacharel em direito pela UnB, e cursou mestrado e doutorado pela Universidade de Paris.

Santos acredita, no entanto, que a inserção do negro na rede pública de ensino superior promoverá também a inserção do negro na vida pública, até então restrita e ainda vista com preconceito.

– Quando cheguei à Câmara Municipal, achavam que estava lá para contar piada e tocar pandeiro – revela o ministro. – O embate na sociedade promovido pelo sistema de cotas contribui de forma extremamente positiva, como instrumento de redução da desigualdade.

Paim calcula que a parcela de negros com cargo nos Três Poderes não chega a 5%, e no Executivo e em estatais não ultrapassa 3%. Santana estima que, no universo de 513 deputados, apenas 8% assumem-se como afro-descendentes.

– É muito pouco, principalmente se considerarmos que os negros representam quase 50% da sociedade – crava Santana. – Em vez de refletir o aspecto racial, o Congresso acaba refletindo o aspecto econômico da sociedade.

O deputado argumenta que o debate em torno da implantação do sistema de cotas está superado. Santana lembra que a medida é temporária, uma forma de garantir acesso e permanência da juventude negra no ensino superior, cuja defasagem de ingresso chega a até 5 anos, de acordo com o Ipea.

– Entramos em um patamar em que devemos desenvolver políticas similares voltadas para outras áreas, como empregos em estatais e demais órgãos públicos – aponta o parlamentar. (F.R. e M.G.)


Cotistas que ingressam na Uerj caem pela metade

Estudantes cotistas e não-cotistas seguem em mãos opostas na Uerj. Uma das principais instituições de ensino superior do Rio registrou, ano passado, menor número de ingresso de cotistas desde que adotou o sistema, em 2003: foram 1.163, menos da metade dos 3.054 do primeiro ano.

Com direito a quase 45% das vagas, o número de alunos cotistas vem caindo. Em 2004, foram 2.124; em 2005, 1.641; e em 2006, 1.591.

A maior queda ocorreu entre cotistas negros. Em 2003, foram 1.951, que representavam 37,49% dos ingressantes. Ano passado, a marca chegou a 393 alunos (8,22%).

Na contramão, a percentagem de alunos não-cotistas subiu de 2.149 (41,30%) em 2003, para 3.615 no ano passado, cerca de três quartos do total de ingressantes.

A percentagem de ocupação de vagas reservadas também despencou para quase metade: em 2003 eram 88% das 2.837 e, no primeiro semestre de 2008, caiu para 43% das 2.380.

A discrepância entre a oferta acima do número de alunos tem origem em alguns problemas, segundo frei David, diretor da Educafro.

– Algumas universidades insistem em não seguir a lei estadual de que todos os alunos da rede pública tenham isenção automática da taxa para inscrição no vestibular. O prazo de cerca de quatro dias para que seja pedida isenção acaba ficando apertado, e não é bem divulgado.

Soma-se a isso, segundo frei David, a falta de divulgação da Secretaria de Educação e do governo do Estado. Cerca de 60% dos alunos da rede pública desconhecem o sistema de inclusão por cotas. Outros desistem pois não têm condições financeiras de irem para a universidade. Frei David lembra que a bolsa prometida pelo governo com verba para passagem e lanche não é colocada em prática.

Evasão

Dados sobre evasão acadêmica de 2003 a 2007 mostram, contudo, que cotistas negros evadiram menos (12,99%) do que não-cotistas (16,97%).

Renato Ferreira, coordenador do Programa Políticas da Cor do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj, explica que os bons resultados ocorrem porque os cotistas agarram a vaga como oportunidade única.

– Muitas vezes, esse aluno é o primeiro ou um dos poucos entre familiares a ingressar na universidade – observa. (F.R. e M.G.)


Quem ataca: discriminação racial ao contrário

O sociólogo do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS), Simon Schwartzman, não se diz surpreso com o desempenho de alunos cotistas. Um dos que assinaram o manifesto 113 Cidadãos Anti-Racistas Contra as Leis Raciais, pela suspensão das cotas para negros nas universidades – entregue ao presidente do STF, Gilmar Mendes, em 30 de abril – Schwartzman lamentou a forma com que os dados foram divulgados.

– Da maneira com que as estatísticas foram apresentadas, com as informações sumarizadas, sem especificar detalhes por curso, não dá para avaliar com precisão os resultados – argumenta. – Não sou contra políticas de ações afirmativas. Não quero é que o governo coloque o carimbo de raça em cima das pessoas.

O filósofo José Arthur Giannotti, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, analisa criticamente o sistema de cotas nas instituições de ensino superior.

– Numa instituição pública não há espaço para se discutir quem é filho de italianos, de negros etc. Se em um colégio privado quiserem seguir uma seita religiosa, por exemplo, é outra história. Mas em escola pública essas diferenças não devem aparecer. Uma escola do governo não pode contemplar diferenças de raça, cor, religião ou sexo.

Mais do que um paliativo, Giannotti acredita que a política de cotas é uma maneira de pensar o país como uma colagem de raças distintas. E sugere: "Se temos cotas para negros dentro de universidades é preciso haver também para vereadores, deputados e senadores".

– A solução do problema está longe de se dar pelas cotas – critica. – Políticas de reforço e amparo, como bolsas, nos ensinos fundamental e médio, seria o ideal para uma competição igualitária.

O poeta Ferreira Gullar, um dos que assinaram o manifesto contra as cotas, considera o sistema de cotas nas universidades equivocado, pois o "aluno deve ingressar na universidade por seus méritos e não por sua cor". Trata-se, para ele, de um critério "racista para resolver o que está errado".

– É uma medida artificial, um remendo que se faz dentro de uma visão demagógica e, além do mais, é discriminatória em relação ao branco pobre, que pode ter a mesma nota mas perde a vaga para o negro – observa. – Isso, sim, é discriminação. Todas as pessoas que não são negras são culpadas por ter havido escravidão no Brasil? Vamos todos pagar pelo que houve e acabou há mais de um século? Não vamos consertar injustiça com mais injustiça e muito menos racismo com racismo.

Herança

O historiador Oliveira Silveira rebate as opiniões contrárias ao sistema de cotas e classifica a posição como um vício elitista.

– Existe um vício de enxergar a universidade pública como espaço para as classes dominantes – lamenta. – Essas instituições têm abrigado filhos de ricos que não querem perder esse espaço agora que as universidades se voltam para a população mais carente. (F.R. e M.G.)


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