Jornal do Brasil  -  País  -  pg. A5  -   26/5
Pioneira, UnB sofre com racismo
Luciana Abade

Brasília

Banheiros pichados, vandalismo em apartamento. Tudo feito de forma silenciosa e covarde

A Universidade de Brasília (UnB) foi a primeira instituição de ensino superior federal a adotar o sistema de cotas raciais. O primeiro vestibular que destinava 20% das vagas para os alunos cotistas foi realizado no segundo semestre de 2004. Talvez pelo pioneirismo, houve episódios que podem ser caracterizados como atos de segregação racial.

A iniciativa da instituição gerou um intenso debate na sociedade e no meio acadêmico. O processo de seleção dos candidatos cotistas foi objeto de controvérsias.

A UnB designou uma comissão com cinco integrantes que avaliaram mais de 4.385 fotografias em poucas semanas. Os indivíduos fotografados deveriam ser confirmados como negro a partir de características físicas como cor de pele, tipo do cabelo e formato do nariz.

Apenas 212 não foram considerados negros. A comissão de seleção determinou que só negaria uma inscrição se a decisão fosse unânime.

Na época, a UnB foi intitulada "tribunal da raças" por alguns segmentos da imprensa. Passados quatro anos, outras 53 universidades federais adotaram o sistema de cotas. A polêmica, no entanto, continua. Enquanto para alguns o novo sistema corrige uma injustiça histórica, muitos acreditam que a medida aumenta a segregação racial.

A UnB trocou as fotografias por uma entrevista. Um episódio ocorrido em junho de 2007, quando dois irmãos gêmeos fizeram inscrição no vestibular, mas apenas um foi considerado negro, foi crucial na mudança do processo de seleção.

Algumas instituições ainda adotam a fotografia na seleção dos candidatos cotistas, outras usam a entrevista e, em muitas, o que vale é auto-definição do candidato.

Para o coordenador do Centro de Convivência Negra da UnB, Jaques Jesus, a heterogeneidade da população brasileira deveria estar refletida na demografia universitária, mas, infelizmente, isso não ocorre sem que haja alguma forma de intervenção na lógica segregacionista do ensino superior.

– A universidade de nosso país precisa lidar com o elevado grau de resistência dos brasileiros a processos de mudança – argumenta Jesus.

Desafios

Para o coordenador, o sistema de cotas adotado pela UnB demanda uma série de desafios particulares que asseguram inclusão e transcendem o acesso para garantir a permanência qualificada dos indivíduos.

O Centro de Convivência Negra da UnB foi criado em 2005 para prestar serviços e dar apoio aos universitários negros, especialmente os que ingressam na instituição pelo sistema de cotas.

A porta de entrada da universidade alargou um pouco com o sistema de cotas. Mas a saída continua estreita. Relatório produzido pela Assessoria de Diversidade e Apoio aos Cotistas (Adac), da UnB, mostra que, no segundo semestre de 2006, a incompatibilidade entre trabalho e estudos foi o que motivou 46% dos cotistas que abandonaram o curso. Desse percentual, 50% trabalham na iniciativa privada e 50% foram aprovados em concurso público.

A Adac acredita que o estudante levado a abandonar os estudos pelo trabalho perde uma chance de ascensão social a longo prazo. Ressalta, no entanto, que esse é um problema estrutural que está além da universidade e demanda parcerias com os poderes públicos e com os interesse privados.

Para o professor Nelson Fernando, do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UnB, é um erro definir se alguém é negro com base nos referenciais da Biologia.

– A idéia contemporânea de raça não tem referencial na biologia, mas nas condições sócio-econômicas. A visão de que as cotas deveriam ser sociais é desatualizada. É um erro achar que a classe é uma categoria absoluta. Ela é importante, mas não pode suprimir a categoria gênero – acredita Fernando.

Para o professor, pobreza não explica racismo e não dá para achar "que por acaso preto é pobre". Na UnB, entre os candidatos do vestibular com renda superior a R$ 2,5 mil, 46,6% são brancos, enquanto apenas 20,4% são negros.

– O professor Demétrio Magnoli diz que o negro da classe média no Brasil não sabe o que é racismo – contesta Fernando. – Com base em que estudo ele diz isso? É um desconhecimento do que é, realmente, a população negra no Brasil.

Pichações

O professor da UnB lembra que, quando a universidade aprovou o sistema de cotas, muitos banheiros da instituição foram pichados com agressões aos alunos cotistas.

– Muitos dos que têm posição contrária às cotas têm uma atitude covarde. Não aparecem– acrescenta Fernando.

E como acabar com o racismo na universidade? , fica a pergunta.

– Produzindo conhecimento e debatendo o tema – acredita o professor. – Nem sempre, no entanto, os docentes desempenham esse papel.

Ele rebate o argumento dos críticos que defendem a melhoria na Educação em vez das cotas.

– Não entendo o argumento – reage. – Também defendemos a melhoria da escola pública, mas uma coisa não exclui outra. As cotas não inviabilizam a melhoria da escola pública.

Para o professor, toda essa polêmica é gerada porque o Brasil recusou-se a debater a questão do que é politicamente correto.

– O brasileiro lida com as diferenças de forma sarcástica, debochada. Parece até que é um orgulho nacional. O racismo é fruto da mediocridade e da ignorância.

Em março de 2007, um incêndio criminoso destruiu parte de quatro apartamentos ocupados por estudantes africanos na Casa do Estudante da UnB, um conjunto de prédios que a instituição oferece a alunos comprovadamente carentes.

Foi aberto, em outubro de 2007, um processo administrativo para para investigar o envolvimento de alguns alunos no incêndio. O processo da instituição ainda não foi concluído. O incêndio também é investigado pela Polícia Federal e corre em segredo de justiça.


Auxílio e tempo de duração das cotas no Brasil

Fred Raposo

Marsílea Gombata

Apesar de um alento para parte dos jovens negros brasileiros, as cotas raciais nas universidades públicas estão longe de dar conta do grande problema que é a desigualdade racial no Brasil. Para o diretor de Cooperação e Desenvolvimento do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), Mário Theodoro, que coordenou estudo mostrando que a população negra será maior do que a branca no Brasil, ainda este ano – o sistema de cotas é "instrumento de valorização da população negra" e importante passo para quebrar um ciclo vicioso de racismo.

– Preconceito se combate com ações afirmativas, que permitem que populações tenham acesso a melhor qualidade de vida – No Brasil, a ação mais recorrente é a cota, que fará com que negros tenham ensino público de qualidade.

O coordenador do Programa Políticas da Cor do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj, Renato Ferreira, defende medidas de inclusão nos ensinos fundamental e médio como parte do sucesso para o sistema de cotas raciais nas universidades.

– Se tivéssemos escola pública de qualidade para todos, o quadro seria diferente e haveria mais alunos ingressando na universidade – avalia. – As cotas terão mais eficácia e gerarão mais resultados se houver escola pública melhor.

Duração

O sistema de cotas, para Theodoro, é um tipo de ação afirmativa para que dentro de anos tenhamos médicos, advogados e engenheiros negros também:

– Quando crianças negras olharem negros em pontos-chave da sociedade e conseguirem vislumbrar um futuro, mudanças começarão a acontecer. As cotas são um paliativo para a desigualdade que existe hoje. Quando acabar não haverá mais necessidade.

Ferreira aposta que a política de cotas deixará de existir quando "a discriminação for menor, houver mais consciência e mais negros estiverem ocupando espaços de poder":

– Quando esse dia chegar, poderemos abrir mão da política de cotas nas universidades.

Frei David, da ONG Educação e Cidadania de Afro-descendentes e Carentes (Educafro), é direto:

– No máximo 10 anos depois de todas as universidades brasileiras adotarem as cotas, poderemos dar fim a esse tipo de política no Brasil Será o tempo para mudar a realidade brasileira.

Theodoro acredita que quanto mais a população negra crescer no Brasil, mais aumentará a pressão para que seja discutida a questão racial. Este movimento, avalia, acarretará mudanças significativas para a sociedade.


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