O Globo  -  Opinião  -  pg. 06  -   18/5
Tema em discussão: Cotas raciais

Nossa opinião

Maniqueísmo

A polêmica das cotas, na qual está em jogo o projeto de país que se quer — se aberto ou regido por normas capazes de dividir perigosamente a sociedade —, chegou ao Supremo Tribunal Federal, o fórum indicado para deliberar sobre um conflito dessa magnitude. Iniciado o julgamento do tema numa ação sobre o Programa Universidade para Todos (ProUni), o presidente da Corte, ministro Gilmar Mendes, já recebeu manifestos das duas correntes em choque.

Com o julgamento suspenso por um pedido de vista do ministro Joaquim Barbosa, depois do primeiro voto, favorável às cotas, de Ayres Britto, os dez magistrados que faltam votar ganharam mais tempo para refletir. Experientes, os ministros saberão se defender do maniqueísmo existente no debate. Expresso, por exemplo, no documento dos defensores das cotas entregue a Gilmar Mendes, quando ele considera ser a visão oposta uma expressão da “elite conservadora”, interessada em “manter o poder que acumulou no período da escravidão”.

É mais um equívoco dos que pretendem racializar o contrato de convívio social num país miscigenado, sem o passado de choques entre brancos e negros existentes nos Estados Unidos, fonte de inspiração da política de cotas — por sinal, lá derrubada exatamente na Suprema Corte. As cotas funcionam como um Cavalo de Tróia, para contrabandear uma tensão racial inexistente no Brasil.

Quando se critica a proposta, um objetivo é impedir que haja um apartheid contra o branco pobre, um dos mais prejudicados pela idéia. Conforme alerta o documento encaminhado ao STF por 113 intelectuais, artistas, representantes de movimentos sociais e de sindicatos, as cotas, ao contrário do que se quer fazer crer, são elitistas, pois beneficiarão apenas uma franja da classe média, média/baixa, mantendo a grande massa de pobres, independentemente da cor, à margem do ensino. Para o governo, defensor das cotas, convém acenar com uma solução pretensamente milagrosa que o exima de executar com a pressa e prioridade necessárias a ação afirmativa mais indicada: melhorar o ensino público básico a toque de caixa e estimular programas específicos que permitam o acesso dos pobres — não importa se brancos, negros, mulatos, amarelos — à universidade pelos seus próprios méritos. E não por um artifício burocrático que de nada lhes valerá quando tiverem de disputar espaço no mercado de trabalho.

Outra opinião

Solução temporária 
RICARDO VIEIRALVES

Há cerca de cinco anos introduziu-se no país a reserva de vagas nas universidades brasileiras. A Uerj foi a primeira a instituir essa política, através de lei aprovada na Alerj. Há hoje muita discussão sobre este tema e, ainda bem, haverá de ocorrer muito mais. O centro do debate está situado na decisão de criar uma reserva de vagas para a população negra brasileira. Estamos incorporando soluções americanas para os brasileiros? Estabelecendo uma política de racismo às avessas no país?

São questões relevantes, mas insuficientes para a análise criteriosa do debate. É um fato que a política de cotas promove um ato de desigualdade com o objetivo de promover, e principalmente acelerar, a igualdade. O Brasil teve quase quatro séculos de escravidão e, desde a instituição da República, não fez o “dever de casa” republicano. Dever de promover a igualdade e inserir a população negra descendente de escravos na condição de cidadãos.

As trágicas constatações feitas por pesquisadores do Ipea, que associam o indicador de cor aos piores indicadores sociais do Brasil em escolaridade, condições de moradia, consumo de bens e salários, demonstram que não houve uma inserção definitiva dessa população nos valores e direitos da República. A política de cotas é um ato de força para acelerar um processo que, se não for feito, pode nos legar uma série significativa de gerações perdidas.

Não desejo que seja uma política permanente. A manutenção da política de cotas denuncia que o processo de inserção da população negra na sociedade brasileira não ocorreu. O maior dos perigos que vejo nesse programa é a prevalência de uma ideologia corporativista que lamentavelmente assola o Brasil desde sua fundação.

Tivemos coragem para instituir e é preciso que haja a mesma coragem para desfazer. Por isto é imperativo que Estado e sociedade acompanhem o desenvolvimento dessa política. Para tal, a partir do segundo semestre, a Uerj, com o apoio da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, fará uma avaliação profunda do sistema, apresentando, com total transparência, os dados para todo o país.

RICARDO VIEIRALVES é reitor da Uerj. 


Topo     Imprimir      Volta