Folha Dirigida  -  Educação  -  pg. 01  -   13/3
As novas faces das políticas de cotas
Bruno Aires

Allyne Andrade tem 22 anos e cursa o 9º período de Direito na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Ela é uma das estudantes que ingressaram na instituição em 2004, através do primeiro vestibular do país a utilizar cotas raciais e para alunos de escolas públicas. Negra e consciente do seu papel na sociedade, a estudante acredita que, nessa meia década de existência, a reserva de vagas mudou a cara do ensino superior. Mas ainda há o que se aprimorar.

"As ações afirmativas são positivas dentro da universidade. Elas incluíram um público diferente no ensino superior, como os negros e deficientes. Mas houve alguns erros nesses cinco anos. A bolsa-permanência é só de R$190, por um ano. A Uerj não abriu linhas de pesquisas sérias sobre as ações afirmativas, embora possua núcleos de pesquisas respeitados. E dentro da graduação, não há matérias que coloquem o aluno negro como protagonista do discurso e da construção do saber", lista a estudante.

Apesar das críticas, Allyne reconhece que as cotas mudaram sua vida e a dos seus familiares. Moradora de Realengo, ela conta que o único integrante da sua família com curso superior é o seu pai, formado em Contabilidade. "Fui a primeira mulher da família a ingressar numa universidade. Depois, minhas tias e primos também voltaram a estudar. Meu irmão entrou na Uerj, também por cotas. Até minha mãe voltou a estudar e está fazendo um curso pré-vestibular comunitário", diz.

Cursando o último ano de Direito, a estudante reconhece que o caminho não foi fácil e que também enfrentará dificuldades ao sair da universidade. "A sociedade brasileira é racista. Na Uerj, o negro fica estigmatizado. Um aluno branco, se não se manifesta como cotista, ninguém sabe. Já sofri preconceito, porque sou vista como se estivesse ocupando o lugar de outro. Hoje, penso na minha entrada no mercado de trabalho, que vai ser difícil, como é para todos os negros. Quero seguir carreira acadêmica, mas há um preconceito até mesmo de encontrar um professor que discuta a questão racial com os alunos", avalia.

Revisão da lei

As cotas foram criadas pelo decreto 30.766, em 2002. Desta forma, além da Uerj, a Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) e o Centro Universitário Estadual da Zona Oeste (Uezo) deveriam reservar parte das suas vagas para alunos negros, oriundos de escola pública, deficientes físicos e descendentes de indígenas. Após cinco anos, como estipulado na sua criação, a lei precisa ter uma revisão.

Na última segunda, dia 10, aconteceu na Procuradoria-Geral do Estado, no Centro do Rio, uma audiência pública para abrir a discussão sobre o que pode mudar na lei. O objetivo era apresentar os resultados positivos, os erros e os planos para os próximos anos.

Na ocasião, a procuradora-geral do estado, Lúcia Lea Guimarães Tavares, explicou que a lei pode sofrer vários tipos de mudanças e, até mesmo, sua revogação. "Pode ser criada até uma lei nova. Eu, particularmente, acho a reserva de vagas ótima. Tanto assim que muitas outras universidades, em outros estados, fizeram programas semelhantes depois que essa lei foi instituída aqui no Rio de Janeiro. Acho que o ponto positivo principal dessa lei é que ela provoca um debate, ainda mais porque funciona plenamente nas universidades estaduais", analisa.

Para a sub-reitora de Graduação da Uerj, Lená Medeiros, mais importante do que pensar em propostas para mudar a lei, é ajustar os equívocos cometidos ao longo desses anos. "Estamos avaliando a entrada dos cotistas no mercado de trabalho. Os primeiros se formaram no final de 2007. Aí, sim, teremos uma visão clara de como a universidade está contribuindo para reduzir as desigualdades. É óbvio que entrar na universidade é importante, mas é preciso que os alunos consigam condições de trabalho no mercado", enfatiza.

Durante a audiência pública, a professora Lená aproveitou para fazer uma avaliação da adoção das cotas na Uerj. "A reserva de vagas é uma realidade. Não foi um processo fácil. Até hoje, há ainda quem seja favorável e quem a conteste. O que se percebe é que o cotista tem uma consciência plena do que significa ingressar na universidade e a responsabilidade de dar o melhor de si", acredita a sub-reitora.

A pró-reitora de Graduação da Uenf, Lílian Bahia Oliveira, destaca que algo importante a ser feito é descobrir porque nem todas as vagas oferecidas pela reserva chegam a ser ocupadas. "Isso precisa ser diagnosticado. A Uenf já começou esse trabalho e, em 2008, vamos atuar de maneira mais contundente para descobrir isso. Para mim, a política de cotas é necessária para corrigir injustiças históricas e a universidade deve colaborar com a inclusão e com a luta contra as distorções sociais", opina.

Advogado e coordenador do Programa de Políticas da Cor na Educação Brasileira, da Uerj, Renato Ferreira acredita que a principal conquista da reserva de vagas foi vencer a desconfiança inicial. "Quando o sistema foi adotado, havia uma grande parcela da sociedade contrária. Hoje, dezenas de instituições no Brasil adotam ações afirmativas, sendo a maioria de cotas raciais (negros e indígenas). O grande problema é prover a permanência dos alunos no ensino superior. Quando não desistem, muitos alunos ficam frustrados porque esperavam ter mais apoio das universidades", afirma.

Expansão das cotas

A reserva de vagas, principalmente para negros, pode se expandir ainda mais. Isso é o que defende o coordenador da ONG Educafro, frei Davi Raimundo dos Santos. Segundo ele, é importante que sejam criadas cotas no mercado de trabalho e, até mesmo, em cursos de pós-graduação. "As cotas são uma experiência fantástica, que vem sendo repetida nos quatro cantos do Brasil. Mas é preciso dar suporte para os cotistas de hoje poderem entrar no mercado de trabalho", avalia.

Para frei Davi, é importante também que, caso a lei passe realmente por mudanças, o governo estadual dê mais atenção a ela. "Depois de cinco anos é inaceitável que 60% dos alunos da rede pública de ensino desconheçam que as universidades estaduais têm reserva de vaga. Mas é isso que acontece, o que se trata de um absurdo. Já participei de três reuniões na Secretaria de Educação, que garantiu que faria uma cartilha de divulgação sobre isso nas escolas. Até agora, por má vontade, nada foi feito", critica.

Depois da audiência pública da última segunda, 10, os assuntos debatidos serão analisados pelos procuradores do estado. Caso alguma proposta venha a ser vista como viável, será encaminhada para o governador Sérgio Cabral Filho. Depois, as mudanças na lei (que poderá até ser substituída por outra) terão que ser aprovadas na Assembléia Legislativa do Rio (Alerj) antes de serem colocadas em prática.


Você acredita que teria entrado para a Uerj sem o sistema de cotas?

"Acho que teria condição de ingressar na universidade sem o sistema de cotas, pois me preparei bastante e fiz curso pré-vestibular. Entretanto, as cotas facilitam e nos dão mais chances. Entrei pelas cotas para negros, mas também cursei o ensino médio em escola pública e, por isso, tive uma base fraca. Sei que os alunos de escolas públicas têm muitas dificuldades, eles precisam dessas cotas".
Israel Mendonça dos Santos
18 anos, Informática

"Ingressei pelas cotas para escola pública. Mas, na época, verifiquei a minha pontuação e percebi que teria ingressado sem o sistema de cotas. Já estava tentando há dois anos e acho que isso me ajudou a ter mais base. Na escola, não tive um bom ensino. Acredito que o ensino público deveria ter mais qualidade, para que assim as cotas acabassem. Não acho certo esse sistema, mas é um mal necessário".
Carolina Silva Terra
23 anos, Pedagogia

"Se não fossem as cotas para alunos da rede pública, não teria a oportunidade de estudar na Uerj. Minhas notas foram muito baixas, afinal, não tinha base nenhuma. Durante o ensino médio, só tive aulas de Matemática e Física no último ano. Isso prejudica bastante os alunos. O ensino público deveria ser de qualidade e compatível com a dificuldade dos vestibulares".
Daniele da Silva Neves
20 anos, Engenharia Civil

"Provavelmente não estaria estudando na Uerj. Tive um ensino muito fraco, de má qualidade. Apesar de não ser a favor do sistema de cotas, pois defendo um ensino público de qualidade, que ofereça base para os alunos, sei que as cotas são necessárias. Através desse sistema, temos condições de competir em pé de igualdade com os demais vestibulandos."
Débora Lima Molter
19 anos, Engenharia Mecânica


Ação afirmativa que realizou um sonho

Aos 48 anos, Solange Campos (foto acima) é só alegria. E ela diz que tanta felicidade se deve ao fato de ter conseguido se formar no ensino superior. Defensora das ações afirmativas, Solange ficou 18 anos sem estudar e foi a primeira da família a ser formar em uma universidade. "Tive que parar de estudar para ajudar a família. Somos nove irmãos e precisava trabalhar", conta.

Moradora de São Paulo, ela veio ao Rio para participar da audiência que discutiu os cinco anos da reserva de vagas nas universidades estaduais fluminenses. Mãe de quatro filhos e com um neto de 7 anos, Solange entrou na Universidade Anhembi Morumbi através do Programa Universidade para Todos (ProUni) e, depois de cursar a graduação em Gastronomia, trabalha no Novo Hotel Center Norte. Hoje, ela serve de exemplo para toda a sua família e já se prepara para, em setembro, conhecer a África do Sul, em sua primeira viagem internacional.

"Sempre pensei em entrar na universidade, mas não sabia como seria. Dei prioridade aos meus filhos, mas também queria um jeito de me incluir. As ações afirmativas permitiram isso. Infelizmente, dentro da universidade, fui questionada. Eu tinha que explicar o tempo todo porque estava lá, como havia entrado e porque não pagava a mensalidade. Fiquei 18 anos sem estudar, mas queria voltar. Ou seja, a pessoa até pode parar de sonhar, mas nunca esquece o seu sonho", acredita.


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