O Globo  -  Rio  -  pg. 14  -   16/8
Vem aí um novo tipo de cota
Daniel Engelbrecht

Projeto reserva 45% das vagas para escolas de oficiais, garantindo emprego público

A Assembléia Legislativa do Rio aprovou ontem em primeira votação um projeto de lei criando o que seria, na prática, o primeiro sistema amplo de cotas para ingresso no serviço público estadual (já existem vagas reservadas para deficientes). O projeto, de autoria do deputado Gilberto Palmares (PT), destina 45% das vagas nas escolas de Formação de Oficiais da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros a estudantes oriundos da rede pública de ensino, negros, pessoas com deficiência, integrantes de minorias étnicas e filhos de policiais, agentes penitenciários e bombeiros mortos em serviço.

A proposta, que ainda será submetida a nova votação, é objeto de críticas de oficiais e especialistas em direito administrativo. Ao contrário de universidades, onde o cotista, depois de formado, terá que disputar um lugar no mercado de trabalho, a nova cota na prática garantiria ao beneficiado um posto no serviço público. Com duração de três anos, o curso de formação de oficiais da PM é ministrado na Academia de Polícia Militar Dom João VI. No terceiro ano de preparação, os cadetes fazem estágio operacional em batalhões da PM.

Ao fim dos três anos, são declarados aspirantes a oficial, sendo classificados para atuar nas unidades de polícia do estado.

O projeto inclui as escolas de Formação de oficiais no rol de instituições abrangidas pela lei estadual 4.151/2003, que criou o sistema de cotas nas universidades estaduais. O principal argumento é de que os cursos oferecidos pelas duas instituições são de nível superior e o acesso se dá pelo vestibular unificado da Uerj. De acordo com a lei, 45% das vagas nos cursos de graduação das universidades públicas estaduais devem ser reservados a estudantes carentes, sendo 20% para alunos oriundos da rede pública, 20% para negros e 5% para deficientes, integrantes de minorias étnicas e filhos de policiais, agentes penitenciários e bombeiros mortos em serviço.

Na justificativa do projeto, Palmares argumentou que a intenção da Lei de Cotas é dar oportunidade de acesso àqueles que estariam disputando em desvantagem o ingresso nas instituições públicas de ensino superior.

“Não há motivo, portanto, para não incluir entre as instituições alcançadas por esta lei as escolas de Formação de Oficiais, uma vez que a desigualdade de oportunidade de acesso aos postos mais elevados destas corporações também é notória”, alegou.

Entidade de oficiais da PM é contra

O projeto, no entanto, não foi bem recebido pela Associação de Oficiais da PM. Para o presidente da entidade, coronel Paulo Monteiro, o ingresso na corporação não é um vestibular: — Trata-se de um concurso para ingresso no serviço público, não de um vestibular, e para isso a Constituição é bem clara: não há cotas.

Durante o curso, os cadetes recebem bolsa-auxílio do governo do estado.

O mesmo acontece na Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Oficiais do Corpo de Bombeiros (EsFAO).

Na Uerj, somente os alunos cotistas recebem ajuda financeira, por intermédio da Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa (Faperj).

Por esses motivos, o advogado Hermano Cabernite, especializado em direito administrativo, considera equivocada a proposta de introdução do sistema de cotas no acesso às escolas de formação de oficiais.

— Como o aluno dessas escolas é remunerado pelos cofres públicos durante o curso, o vestibular para ingresso nelas pode ser comparado a um concurso público. E a Constituição Federal, em seu artigo 37, assegura a todos iguais oportunidades de disputar cargos ou empregos na administração pública — afirma.

Já o advogado Luiz Paulo Viveiros de Castro tem opinião diversa. Para ele, não há impedimento legal para a criação de cotas para acesso ao serviço público: — A base de todo sistema de cotas é de que a igualdade entre os desiguais se faz pela desigualdade no tratamento. Isso não é inconstitucional. Tanto que, nos concursos públicos em geral, existe a previsão de vagas destinadas exclusivamente a deficientes físicos.

Presidente da Associação de Cabos e Soldados da PM, Vanderlei Ribeiro defende a discussão do projeto com as associações representativas das categorias envolvidas: — Não fomos ouvidos sobre isso. Nossa posição é de que o sistema de cotas deve ser o mais amplo possível, incluindo aqueles que ganham pouco e têm dificuldade para pagar um cursinho preparatório, como os praças da PM e do Corpo dos Bombeiros.

Único deputado a ter votado contra a proposta, Flávio Bolsonaro (PP) destaca que os quadros da PM e do Corpo de Bombeiros já refletem a miscigenação da população.

— Sou contra o sistema de cotas em geral, por ser ele racista, discriminatório e estar muito longe de atingir os objetivos de inclusão social.

Além disso, no projeto em questão, há problemas de ordem prática. Não é razoável, por exemplo, um cadeirante ingressar na PM ou no Corpo de Bombeiros, pois hoje um policial que fica paraplégico é reformado — afirma o deputado.

Bolsonaro é autor de um outro projeto de lei, em tramitação na Alerj, prevendo um plebiscito para a população escolher se quer manter ou não as cotas nas instituições estaduais.

Para Palmares, o argumento de que o sistema de cotas não poderia ser aplicado às escolas de oficiais, pelo fato de o acesso a elas ter natureza de concurso público, é equivocado.

— O processo de ingresso em qualquer universidade também é um concurso público. O fato de ser aprovada para a escola de formação de oficiais não significa que a pessoa se tornará oficial. Ela tem que ser aprovada no curso, como em qualquer outra instituição de ensino superior, passando por uma série de avaliações e exames — diz o deputado.

Ele também rebate a afirmação de Bolsonaro de que os quadros de oficiais da PM e do Corpo de Bombeiros já são representativos da população fluminense.

— As cotas tendem a ajudar na democratização dessas instituições — destaca.

Tanto a PM quanto o Corpo de Bombeiros julgaram prematuro falar sobre o assunto antes da segunda votação, que deve acontecer na semana que vem.

 

Sistema foi criado há quatro anos


Criado há quatro anos, o sistema de cotas nas universidades públicas estaduais é até hoje motivo de polêmicas. A mais recente delas aconteceu no mês passado, com a aprovação de uma lei de autoria do deputado e ex-chefe de Polícia Civil Álvaro Lins (PMDB), incluindo os filhos de policiais, bombeiros e agentes penitenciários mortos em serviço entre os beneficiados pela reserva de vagas.

A lei alterou um trecho do texto original, que destinava 5% das vagas a minorias étnicas e portadores de deficiência, incluindo nesse percentual os filhos de agentes de segurança mortos.

A medida despertou críticas dentro da Uerj, por não ter sido discutida com docentes e alunos.

Em fevereiro, a universidade divulgou dados relativos ao vestibular 2007 que mostravam a diminuição da participação dos cotistas em relação aos anos anteriores.

Em 2004, o curso mais concorrido entre alunos da rede pública foi jornalismo, com 13,25 inscritos por vaga. Este ano, foram apenas 3,5 por vaga. O curso de medicina, o mais concorrido este ano entre cotistas e não cotistas, teve relação candidato/vaga de 3,16 entre os inscritos que se declararam negros, 4,59 entre os estudantes oriundos da rede pública e 59,55 entre não cotistas.

Ao todo, o vestibular da Uerj teve 28.701 inscritos, sendo 26.336 não cotistas (para 2.778 vagas), 1.581 alunos da rede pública (para 1.031 vagas), 753 negros (para 1.031) e 31 portadores de deficiências (para 288).

Além da Uerj, a Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), o Centro Universitário da Zona Oeste (Uezo) e a Fundação de Apoio à Escola Técnica (Faetec) também reservam vagas no estado desde 2005, quando foi aprovado pela Alerj um projeto de lei ampliando o sistema de cotas.


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