O Globo  -  Mundo  -  pg. 33  -   29/6
Cotas em xeque nos EUA
José Meirelles Passos Correspondente

Decisão da Suprema Corte abre caminho para que sistema de ação afirmativa seja derrubado

• WASHINGTON Por meio de uma decisão apertada — cinco votos contra quatro — a Suprema Corte dos Estados Unidos praticamente derrubou ontem o princípio de ação afirmativa, estabelecida após o fim da segregação racial e que garantia até aqui às minorias étnicas um lugar nas escolas públicas, através do estabelecimento de uma cota. Ao julgar ações impetradas contra dois distritos escolares — um em Seattle, no estado de Washington, e outro em Louisville, Kentucky — a maioria conservadora do tribunal determinou que a raça não pode ser um fator quando se distribuem alunos no sistema de escolas públicas.

Embora eles tenham deixado claro que tal decisão valeria apenas para os cursos de Ensino Fundamental e Médio, surgiu de imediato uma polêmica devido ao fato de esse parecer firmarse como jurisprudência, e dar margem a ações judiciais que venham a provocar o fim do sistema de cotas inclusive nos cursos universitários.

— Essa decisão de hoje faz andar para trás o relógio que marcava a igualdade em nossas escolas — reagiu o senador Edward Kennedy.

O reverendo Jesse Jackson, que participou com Martin Luther King do movimento que pôs fim à segregação racial, também lamentou a decisão dos juízes, chegando a inventar um verbo para definir a situação: — Está estabelecida a premissa para a “ressegregação” dos Estados Unidos e a negação da oportunidade. Herança e acesso não serão contrabalançados pela proteção igualitária.

Pouco mais de meio século depois de a própria Suprema Corte tornar ilegal a segregação racial nas escolas públicas, os juízes protagonizaram um debate controvertido ao considerar qual papel a raça deve ter quando uma escola precisa decidir a quem dar uma vaga. E, de acordo com as primeiras reações, a sua decisão colocará o assunto de volta na ordem do dia — inflamando inclusive a campanha eleitoral dos pré-candidatos à Casa Branca.

Confrontado com a percepção generalizada de que a decisão da Suprema Corte poderia ser interpretada como o embargo do uso da raça, em qualquer circunstância, o seu presidente, juiz John G. Roberts Jr., que votara a favor, rebateu: — Eu discordo desse raciocínio.

Ao explicar a posição da maioria, no documento final, Roberts redigiu um parágrafo enigmático: “O princípio de que o equilíbrio racial não é permitido é de substância, e não semântica.

A maneira de parar a discriminação com base na raça é parar de discriminar com base na raça”.

Juiz progressista diz que país lamentará

Os quatro juízes considerados progressistas e que votaram contra apresentaram suas justificativas usando o dobro do espaço (160 páginas) utilizado pelos seus cinco colegas. Stephen G. Breyer, um dos progressistas, resumiu em tom de alerta: — Essa é uma decisão que a Suprema Corte e a nação irão lamentar.

O caso de Louisville dizia respeito a Crystal Meredith, mãe solteira que impetrou uma ação judicial depois que o sistema escolar rejeitou o seu pedido para transferir Joshua, seu filho de 5 anos, para uma escola mais próxima de sua casa, argumentando que ali não havia vaga para ele. Em Seattle, Kathleen Brose, mãe de um estudante secundário, tomou iniciativa idêntica, pelo mesmo motivo.

As duas mães alegavam que seus filhos — ambos brancos — não obtinham lugar por causa da cota racial que, a seu ver, privilegiava as minorias negra, hispânica e asiática. As duas foram explicitamente apoiadas pelo governo Bush, através de declarações de altos funcionários.

Em Louisville, desde o fim dos anos 90, as escolas promovem a integração através da reserva de pelo menos 15% — e não mais que 50% — para alunos negros. Isso foi estabelecido com base no fato de que a população da área é formada por 60% de brancos e 38% de negros.

Em Seattle, as escolas utilizam desde 1998 o sistema de desempate.

As famílias podem enviar os filhos para qualquer escola, e quando há mais interessados do que vagas e a escola não é considerada “racialmente equilibrada”, a raça passa a ser o “fator de desempate” para se alcançar a diversidade.

Metade dos estudantes da escola no centro da controvérsia em Seattle é asiática, um terço é de negros e 7% são hispânicos. As matrículas de brancos caíram de 23% para 10% no ano passado.

“Essa decisão de hoje faz andar para trás o relógio que marcava a igualdade em nossas escolas”
EDWARD KENNEDY Senador democrata

“Está estabelecida a premissa para a ‘ressegregação’ dos EUA e a negação da oportunidade”
JESSE JACKSON Ativista de direitos civis

 

Reforma da imigração é sepultada

Derrota de projeto de lei no Senado dos EUA é duro golpe para presidente Bush
WASHINGTON. Depois de meses de tentativas, o Senado americano sepultou ontem a proposta de reforma da lei de imigração que poderia legalizar a situação de cerca de 12 milhões de estrangeiros ilegais. A liderança da Casa disse que não recolocará o tema em pauta até as eleições presidenciais, em novembro do ano que vem.

O projeto de lei, que fora elaborado por um grupo de senadores democratas e republicanos e pela Casa Branca, precisava de 60 votos ontem para ser levado a votação, mas foi derrotado por 53 a 46. Apenas 12 republicanos votaram a favor da medida, apesar de o presidente dos EUA, George W. Bush, ter se empenhado diretamente na questão, telefonando para vários senadores de seu partido.

— Muitos de nós trabalhamos duro para ver se poderíamos encontrar um consenso. Não deu certo — reconheceu o presidente ontem, horas depois da derrota.

Especialistas afirmaram que a derrota do governo dentro de seu próprio partido representa um fim melancólico para a tentativa de Bush de deixar um legado para a posteridade no fim de seu segundo mandato. Com taxas de aprovação abaixo da faixa dos 30%, o presidente deixou de ter capacidade de convencer até mesmo seus correligionários.

Depois da derrota, ele tentou responsabilizar apenas o Congresso pela derrota.

— O Congresso falhou ao tentar agir — disse Bush.

Senadores trocam acusações no plenário No Senado, no entanto, o fator que mais colaborou para a derrota da medida foi a rejeição que o projeto sofreu dos extremos dos dois partidos.

Tanto a direita do Partido Republicano quanto a esquerda do Democrata discordavam da proposta.

Nas últimas semanas, os conservadores tinham conseguido inserir algumas emendas mais restritivas à legalização da situação dos imigrantes ilegais. Porém, os democratas progressistas consideraram que as alterações haviam descaracterizado o projeto, ao mesmo tempo em que a parcela mais à direita dos republicanos não achava que as mudanças tinham sido suficientes, e que a lei significaria uma anistia.

— Esse debate sobre a imigração se tornou uma guerra entre o povo americano e seu governo — afirmou o senador Jim DeMint, um dos líderes da resistência conservadora à proposta. — Isso transcendeu o assunto imigração. Se tornou uma crise de confiança.

Senadores chegaram a trocar ataques da tribuna da Casa.

— Nós sabemos em relação a que eles são contrários. Só não sabemos o que eles defendem — disse o senador democrata Robert Kennedy, um dos principais articuladores da proposta, que depois chegou a se virar e falar diretamente para os senadores contrários à medida. — Vocês vão dar atenção às vozes do medo? É essa a questão.

Kennedy chegou a dizer que os oponentes do projeto de lei estariam imaginando a criação de “uma espécie de Gestapo” para prender imigrantes ilegais, referindo-se à polícia secreta, responsável pela perseguição de minorias na Alemanha nazista.

Em resposta, o senador republicano Jeff Sessions disse que os defensores da medida se consideravam “os senhores do universo”.

A proposta criava mecanismos para que os cerca de 12 milhões de imigrantes ilegais que moram nos EUA conseguissem pleitear a legalização de sua situação, através do pagamento de multa e da obrigação de voltar a seus países de origem para pedir um visto. Porém, várias emendas foram incluídas, tornando mais difícil a legalização, e impedindo a entrada de parentes próximos de imigrantes legais nos EUA.


A ação afirmativa no país

QUANDO COMEÇOU: O estabelecimento da ação afirmativa nos EUA foi um longo processo.

O termo foi usado pela primeira vez numa ordem executiva do presidente John Kennedy, em 1961, no qual ele requeria que empresas que trabalhem para o governo “tomem ações afirmativas para assegurar que candidatos sejam empregados, e que empregados sejam tratados sem discriminação de raça, credo, cor ou origem nacional”. Em 1964, na Lei dos Direitos Civis, foi estabelecido que todos os órgãos federais criariam mecanismos de entrada preferencial de negros, “para corrigir os efeitos da discriminação passada e presente”, segundo o presidente Lyndon Johnson, que obrigou empresas com contrato com o governo a adotar as medidas.

Nos anos 60 e 70, protestos estudantis exigiram que universidades adotassem a ação afirmativa.

Em 1978, numa famosa decisão, a Suprema Corte, por 5 a 4, considerou que cor a pode ser um fator usado para aceitar um candidato, mas não o único.

COMO FUNCIONA: Foram criados sistemas em que vagas em órgãos federais, empresas com contratos com o governo, escolas e universidades deveriam dar um tratamento preferencial a membros de minorias.

O conceito evoluiu para o estabelecimento de cotas para negros, mas decisões da Suprema Corte de 2003 estabelecem que a cor pode ser usada como um dos fatores na seleção de candidatos, mas sem que haja um número específico de vagas.

O QUE DIZ A ONU: De acordo com relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, “o fundamento da ação afirmativa é corrigir erros raciais do passado. Os negros dos EUA foram vítimas, primeiro, da escravatura e, depois, de um século de discriminação legal e freqüentemente violenta”.


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