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Ontem, cotistas. Hoje, em busca de emprego
Eliane Maria

Depois de quatro anos da criação do sistema de cotas nas universidades, primeiros alunos beneficiados já estão formados e enfrentam um novo desafio, o de ingressar no mercado de trabalho


“Eu limpo o chão. Você estuda.” O lema que a mãe repete como um mantra a Deisimara Barreto Peixoto, de 23 anos, norteou a vida escolar desta moradora do Parque Aurora, bairro com um dos mais altos índices de violência em Campos. Uma das primeiras alunas beneficiadas com o sistema de cotas nas universidades estaduais do Rio, em 2003, ela aguarda agora sua chance no mercado de trabalho. Não é a única.

O EXTRA acompanhou durante quatro meses alunos que ingressaram pelo sistema de cotas na Universidade do Estado do Rio (Uerj), na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf) e no Centro Universitário Estadual da Zona Oeste (Uezo). E descobriu que, nas duas primeiras, pioneiras na implantação das políticas de ação afirmativa no estado, nenhum dos entrevistados formados conseguiu emprego formal na área escolhida.


Aulas particulares

Deisimara era um dos 14 cotistas entre os 30 alunos classificados para o 1º semestre de 2003 do curso de ciências da educação, na Uenf. Deles, apenas três estavam no grupo de 11, que se formou em março: ela, Antônio Lírio dos Santos, ex-militar que recebe pensão do Exército, e Tatiane da Silva Lopes. As duas têm sobrevivido com as mensalidades de R$30 e R$35 que cobram para dar aulas particulares.
— Nosso curso passou por uma transição para o de pedagogia e só podemos conseguir emprego como gestor escolar, o que ocorre apenas mediante concurso. Pretendo fazer outro para a área de saúde, para me manter até lá — explica, otimista, a aluna, que contou com a mãe doméstica para fazer malabarismos financeiros e concluir a faculdade:
— Corri atrás para não ficar nenhum período sem a bolsa. Mas os R$193 não eram suficientes para cópias e passagens. Andava a pé para pegar menos um ônibus e levava comida de casa. Quando o dinheiro da minha mãe acabava, ela fazia extras como babá, nos fins de semana.

Representante de negros e alunos de escolas públicas – em 2003, em muitos casos, essas duas reservas se convergiam – Deisimara descobriu nas cotas não só a chance de ter um diploma, mas a própria identidade.
— Eu estava acostumada a ver alunos negros e brancos no ensino fundamental e vi que, na faculdade, era exceção. Percebi que não podia ser apenas mais uma cotista. O debate sobre cotas ainda está na questão de quem é contra ou a favor, mas as pessoas não percebem que elas já são um fato, que já há alunos formados, como eu — explica ela, que hoje assiste, como aluna especial, a aulas de mestrado na Uenf.


Açoes Afirmativas no Rio

Uerj

A universidade adotou o sistema de cotas em 2003, em cumprimento a duas leis estaduais que previam a reserva de 40% das vagas para negros e 50% para alunos de rede pública. No mesmo ano, a lei estadual 4.151 redefiniu os critérios para 45% de reservas — 20% para negros, 20% para estudantes da rede pública e 5% para indígenas, deficientes físicos e outras minorias étnicas (D/I). Os alunos têm direito à bolsa de R$193, por um ano.

Uenf

Segue o mesmo modelo da Uerj, com bolsa de R$214.

Uezo

Adotou o sistema em 2006 com 50% de vagas reservadas (5% a mais para D/I). Não oferece bolsa.
 

Formado no prédio que construiu

O primeiro sonho de menino de Antônio Lírio dos Santos, ser militar, o Exército sepultou com a sua expulsão, durante a ditadura, devido à recusa em executar um exercício de guerrilha contra o “inimigo”, em Macaé. O segundo, reaceso graças ao incentivo de um dos seis filhos, ele concretizou no último dia 6 de março, no Teatro Trianon, em Campos. Seu Antônio, de 59 anos, era um dos formandos do curso de ciências da educação da Uenf, instituição que ajudou a construir.
— Eu era da parte de ferragem e pré-moldagem da empresa que trabalhou na obra da universidade, e pensei: “Poxa, estou ajudando a construí-la. Por que não vou estar nela um dia?” — relembra.

Filho de uma dona-de-casa com um alambiqueiro, Seu Antônio perdeu o pai cedo e começou a trabalhar já aos 8 anos, descascando fruta numa fábrica de goiabadas e engarrafando aguardente, até atingir a idade de ir para as Forças Armadas, interrompendo os estudos.

Voltar aos livros significou esforço físico — ele pedalava 12 quilômetros diários entre o Jardim Carioca e a Uenf, mesmo com chuva — e até a descoberta involuntária da vaidade:
— Era confundido com professor pelo corredor. Aquilo me incomodava. Fui parar num psicólogo, que me disse: “Há poucos cabelos brancos na sua turma? Então, pinte os seus de preto!”

Ele até hoje segue a sugestão, e não se arrepende da experiência:
— Sempre tive vontade de ter um curso superior. Quando vieram as cotas, agarrei a oportunidade com unhas e dentes.
 

Dificuldades são iguais para negros e brancos

A dificuldade encontrada pelos primeiros cotistas que estão deixando as universidades não é fruto da política de cotas, e sim de uma nova demanda para o mercado de trabalho. Moema Aquino, consultora de recursos humanos da empresa Solução, explica que, anualmente, apenas cerca de 25% dos universitários formados em todo o estado — nas redes pública e privada — conseguem emprego formal em suas áreas.
— Somente este percentual é absorvido pelo mercado imediatamente após a conclusão do curso superior. Outros 40% se empregaram em outra área antes ou enquanto faziam a faculdade e, como recebem mais do que receberiam na profissão escolhida, não se arriscam a trocar de emprego — afirma Moema.

A consultora de recursos humanos dá uma dica aos futuros cotistas, para que eles não sejam pegos de surpresa como os estudantes de ciências da educação da Uenf, que descobriram ao longo do curso que não poderiam dar aulas após a formatura:
— Hoje em dia, a orientação vocacional é feita também com pesquisas. É bom procurar informações sobre cursos no Guia do Estudante e, se possível, acompanhar um dia de trabalho de um profissional da área. O aluno às vezes pensa que gosta de um curso, mas não sabe sequer a rotina daquela profissão.

Mudança gradual

Especialista em direito e relações raciais, Renato Ferreira, do Laboratório de Políticas da Cor, da Uerj, prevê uma mudança gradual no mercado de trabalho com a formação de cotistas:
— O mercado vai continuar discriminando quem já discrimina: negros, deficientes. Mas, agora, vai aumentar a representatividade das minorias em muitos setores, forçando uma inserção lenta dessas pessoas.


Univesitário criou curso preparatório

A paixão pela educação move Fábio Paz Rosa, de 23 anos, desde a infância. Sua brincadeira predileta — ser professor — virou realidade para ele muito antes da conclusão do curso de pedagogia da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (FEBF), da Uerj, em abril. Dois anos antes da formatura, Fábio criou seu próprio “estágio”: montou um curso preparatório para concursos de escolas técnicas federais numa paróquia de Anchieta, no subúrbio do Rio, onde também ajuda a coordenar um pré-vestibular.
— Freqüento essa paróquia e pedi autorização ao padre para montar o curso. Como não tinha nada parecido na região, passei em colégios para anunciá-lo e me surpreendi com a procura. Temos dez alunos pela manhã e 35 à tarde — explica o pedagogo recém-formado.

Exemplo para o irmão

Além de pôr em prática os conhecimentos adquiridos na universidade, o curso preparatório ajudou a pagar as despesas de Fábio. Filho de um lanterneiro com uma cozinheira, ele foi o primeiro membro da família a concluir o ensino superior:
— No tempo da faculdade, saía da igreja às 17h, pegava um ônibus até a Avenida Brasil, outro de lá até Caxias, e ainda andava dez minutos até a FEBF. Quando você gosta do que faz, supera dificuldades. Com minha iniciativa, meu irmão mais velho decidiu entrar num pré-vestibular.
 

Da sala de aula para o calçadão

A falta de professores de física e química no ensino médio determinou a escolha do curso universitário quando Robertson Giovani de Melo, de 29 anos, decidiu prestar o vestibular para a Uerj, em 2003. Contagiado pela empolgação de uma namorada com a vida acadêmica, ele se inscreveu no curso de pedagogia da FEBF. Nem o entusiasmo nem o namoro duraram até a formatura.
— Eu era contínuo de um escritório de advocacia e não tinha a intenção de fazer faculdade. Escolhi o curso porque a relação candidato-vaga dele era menor e quase não tive física e química na escola — conta Robertson.


Único a desistir

Morador do Gogó da Ema, em Belford Roxo, ele encontrou dificuldades logo no segundo ano de faculdade.
— Eu já não tinha mais a bolsa do governo e ficou complicado pagar a passagem. Arrumei um emprego em Magé, como locutor numa drogaria, e abandonei pela primeira vez o curso. Voltei no ano passado, mas descobri que não tinha nada a ver comigo. Não me dava prazer — revelou.

Único dos 17 cotistas da turma a desistir da faculdade, ele agora faz bicos como locutor em diferentes lojas:
— Não achei as cotas um grande benefício. O ideal para a maioria seria os ensinos fundamental e médio terem qualidade.
 

Chance vem em forma de bolsa de pesquisa

O curso de pedagogia da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (FEBF), ligada à Uerj, que recebeu a maior nota do estado no último Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), fica a 40 minutos da casa de Érica Duarte dos Santos. Mas só cruzou o seu caminho em 2003, quando esta ex-aluna da rede pública de Duque de Caxias tinha 25 anos. A estratégia era simples: por sugestão de uma prima, ela optou pela área na qual teoricamente conseguiria arrumar um emprego mais facilmente. Depois, realizaria o sonho de fazer relações públicas, para se tornar diplomata.

O emprego ainda não veio, mas a recém-formada pedagoga comemora a conquista de uma bolsa de pesquisa na área de educação, na FEBF.
— Eu tinha preconceito com o curso, porque não dava dinheiro. Mas hoje tenho orgulho. Voltei para estudar tarde porque precisava trabalhar, mas posso dizer que tive oportunidades que muita gente não teve. Não foi só a cota que me trouxe até aqui — assegura Érica, que se classificaria para o curso mesmo sem a reserva de vaga.

Ela também revela que virou cotista no susto:
— Não tenho opinião formada sobre as cotas. Fui preencher o formulário de inscrição e me declarei negra porque sou negra.

Se depender da avó Diva Batista Duarte, de 88 anos, que segurou as contas da casa para manter a neta na faculdade, a formatura terá sido só o começo:
— Eu sempre incentivei a Érica e não vou permitir nunca que ela desista.
 


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