Folha Dirigida  -  Educação  -  pg. 01  -   8/5
Diferentes no ingresso, iguais no desempenho
Bruna Dias

Passados quatro anos desde a implementação do sistema de cotas para alunos negros e carentes na primeira instituição de ensino superior do país, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), os primeiros resultados de uma pesquisa realizada pelo Programa de Políticas da Cor na Educação Brasileira, do Laboratório de Políticas Públicas da instituição, colocaram por terra um dos grandes mitos criados acerca do sistema: o de que a qualidade do ensino prestado a partir do ingresso de alunos cotistas nas universidades iria cair.

Como os cotistas ingressam no ensino superior através de um sistema específico, em que concorrem contra uma pequena parcela de vestibulandos, acaba-se criando uma distorção, já que outros alunos, não-cotistas, podem acabar ficando de fora do ensino superior mesmo obtendo notas maiores. O temor de que a qualidade acadêmica acabasse caindo com o ingresso de estudantes que, teoricamente, não seriam os mais bem preparados, contudo, não se concretizou.

Questionados sobre como ficou o nível acadêmico da universidade após a inserção das cotas, surpreendentemente 79,6% dos docentes da instituição responderam que permaneceu igual. Outros 10,7% dos professores afirmaram que o nível acadêmico melhorou e apenas 9,7% apontaram que o nível ficou pior. A pesquisa foi realizada com 557 professores de quatro instituições que adotam o sistema, além da Uerj a Universidade de Brasília (UnB), Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Os cursos escolhidos foram Direito, Engenharia Civil, História, Medicina e Pedagogia. Dentre o total de docentes entrevistados, 53% deles já havia dado aulas para estudantes cotistas.

Portanto, para os que pensavam que a política estava com os dias contados, as ações afirmativas no ensino superior têm se apresentado de maneira bem definida e conseguido, paulatinamente, conquistas que se mostram fundamentais para o seu contínuo desenvolvimento. Pelo menos é isso o que acreditam os defensores da prática, que abordaram suas visões sobre o assunto durante o seminário "Políticas de Ação Afirmativa no Ensino Superior: Avaliação e Perspectivas", realizado no fim do mês de abril, na Uerj.

Entre os debatedores, estava Renato Ferreira, coordenador do Programa de Políticas da Cor na Educação Brasileira do Laboratório de Políticas Públicas (PPCor-LPP). Segundo ele, os defensores desta política encontram-se em um momento de celebração. "Em 2003, foi realizado o primeiro projeto de cotas e agora o interesse e a aceitação já são muito maiores. Como advogado de movimentos sociais, acompanhei muito de perto o impacto da política de cotas", afirmou.

Segundo o advogado, anteriormente discutia-se a isenção da taxa de vestibular para estudantes carentes como forma de facilitar o ingresso. Hoje, ele destaca a importância da contínua mobilização dos cotistas na universidade. "A invisibilidade de estudantes negros no ensino superior era muito perceptível. Nos cursos concorridos isto era ainda mais latente. É muito importante que os alunos continuem se mobilizando porque ainda há muito mais a se fazer".

Ferreira ressaltou, ainda, que as políticas de ação afirmativa se constituem como uma forma de democratização do acesso, mas também se mostram como uma possibilidade de que direitos fundamentais sejam acessíveis a todos. Por isso, ele defende que o próximo passo é assegurar este direito através do caminho legal. "Se, de fato, o momento é outro, é importante discutir essas questões como o direito de muitos que foram excluídos. Temos muito a caminhar no sentido jurídico", garantiu. Atualmente, um projeto de lei do governo federal determinando que as universidades federais reservem 50% das suas vagas para alunos oriundos do ensino público, aguarda votação no Congresso Nacional.

Pablo Gentili, coordenador do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Uerj (PPFH), também destacou a necessidade da criação de leis para garantir a aplicabilidade das ações afirmativas e lembrou da importância da Uerj na implementação desta proposta. "É importante conhecer o campo social para formular propostas, além do esforço para a compreensão crítica da realidade, para propor alternativas e fazer-se entender pela sociedade. Precisamos, portanto, interferir no campo político para que sejam criadas leis. A Uerj é um  grande laboratório de implementação de ações afirmativas e melhorou muito porque se tornou mais democrática", comentou.

O secretário de Educação do Estado do Rio de Janeiro, Nelson Maculan, também esteve presente no seminário e enfatizou que o sistema de reserva de vagas deve ser uma alternativa transitória. "A reserva de vagas tem que ser uma medida passageira. É uma correção histórica bastante atrasada, mas é o governo que tem que dar condição. O governo federal pode criar programas que favoreçam um trabalho de inclusão", sugeriu o secretário, que até o ano passado era secretário de Educação Superior do Ministério da Educação. Ele criticou, porém, a crença de que o sistema de cotas é uma importação do modelo norte-americano de educação. "Dizem que estamos copiando o modelo de cotas dos Estados Unidos. Precisamos deixar muito claro que nosso sistema educacional nada tem a ver com o sistema educacional americano", decretou.

Ele ressaltou ainda o papel fundamental desempenhado pela Uerj na aplicação das políticas de ação afirmativa. "A Uerj tem, além de qualidade e prestígio, um trabalho muito importante de abrir as portas para as minorias que por muito tempo ficaram privadas disso. Estamos apoiando sempre esse tipo de projeto".

Para Rosângela Zagaglia, coordenadora do Centro de Ciências Sociais da Uerj, o encontro foi um momento essencial para avaliar o funcionamento das ações afirmativas nas universidades. "Além disso, considero também um momento oportuno e importante para repensar a educação dentro da universidade", avaliou. Ela lembrou que o CCS já recebia universitários que hoje são conhecidos como cotistas e garantiu que a próxima barreira a ser superada é proporcionar condição para os estudantes ingressarem em unidades consideradas mais concorridas dentro das instituições de ensino.

"Temos condições de avaliar o quanto esse sistema é importante para a reavaliação de princípios que travávamos teoricamente e que precisamos colocar em prática. A palavra igualdade está sempre presente nos debates e no plano teórico, mas está na hora de tomarmos medidas para colocá-la em prática", proclamou a educadora.


"Ainda há muito o que fazer"

O crescimento das políticas de ações afirmativas no Brasil é destacado por Frei David Santos, diretor-executivo da Educação e Cidadania de Afro-descendentes e Carentes (Educafro), e um dos pioneiros na luta por programas que assegurem a igualdade de direitos raciais no país. Segundo ele, a realidade brasileira se apresenta à frente do que era esperado quando a iniciativa de ações afirmativas foi desenvolvida. Isso indica, na opinião do dirigente, que existe uma considerável maturidade da população brasileira.

"Nós prevíamos que a sociedade e a universidade estariam com muitas dificuldades para adotar estas ações. Imaginávamos que elas só iriam ter coragem de dar esse passo depois que uma lei federal determinasse. Nossa previsão era de que, somente em 2010 conseguiríamos chegar a um coeficiente de 30 instituições superiores adotando à política de cotas. Hoje, nossa realidade nos mostra que já temos 43 instituições públicas federais e estaduais participando deste processo", destacou Frei David.

No entanto, apesar dos avanços na área, o dirigente esclarece que ainda é preciso muito trabalho para que se chegue a um patamar desejável de políticas afirmativas no país. "Temos convicção de que estamos no estágio inicial da caminhada e das conquistas das ações afirmativas. Ainda temos muito o que fazer", diz. Dentre os próximos projetos estão a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial e do projeto de Lei 73/99, que prevê a implementação da política de cotas nas universidades federais, mas está parado no Congresso Nacional.

"Nossa previsão é de que até julho de 2007 consigamos avançar com o projeto de cotas nas federais e também aprovar o Estatuto. Além disso, estamos trabalhando para que a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) e o governador Sérgio Cabral coloquem em votação e aprovem, também até este mês de julho, o projeto do deputado estadual Noel de Carvalho, que determina a aplicação das ações afirmativas em todos os concursos públicos do Estado", exemplifica Frei David.

Numa referência às conquistas dos defensores das políticas afirmativas, o diretor-executivo da Educafro destacou a inclusão de um item no Ato dos Jogos Pan-Americanos, lei que as cidades que sediam o evento devem fazer dando orientações sobre a realização dos jogos. "Esta lei, que é uma norma do Comitê Internacional do Pan, foi aprovada pelos deputados estaduais e assinada pelo governador Sérgio Cabral e prevê que todos os cargos de contratação que serão feitos para o evento deverão ter ação afirmativa, garantindo também a contratação de afrodescendentes. Foi uma vitória muito importante para a comunidade negra", defende.

De acordo com Frei David, as ações afirmativas são o instrumento mais eficaz para garantir o equilíbrio da diversidade no acesso de negros e brancos. Ele garante, porém, que a maturidade dos órgãos públicos e instituições particulares no que diz respeito à inclusão e diversidade ainda está em processo de despertar de consciência. É, no entanto, numa recente pesquisa nacional do Ibope, divulgada em setembro de 2006, que o diretor-executivo da Educafro revelou ter sua maior surpresa.

"Nesta pesquisa sobre as ações afirmativas no país, questionou-se a aprovação da política de cotas somente para negros e 67% da sociedade brasileira disse sim. Se, além de negros, os indígenas e outros pobres também fossem incluídos, o índice de aprovação subiria para 85% dos entrevistados. Ou seja, a sociedade entende e apóia esta questão, além de mostrar alto grau de maturidade. Foi realmente surpreendente".


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